segunda-feira, novembro 29, 2010


A Borboleta

Sentou-se diante do espelho. Em que havia se tornado? Maquiagem demais estraga a beleza da mulher? Ela usou muitos batons, blushes, rímeis...Riu muito durante as noites, risos falsos e repetitivos que ela nem sabia que eram falsos e repetitivos. Ria para agradar e se acostumara com o ofício.
Pegou o batom e pintou a boca murcha. Soltou os cabelos amarelados de tinta. Riu como antes e fez uma pinta no lado esquerdo da boca. Tomou o cigarro com piteira e fumou, riu, tossiu e chorou- tudo assim- ao mesmo tempo- as expressões múltiplas se sobrepondo umas às outras...Voava, voavam as várias faces...Mais uma vez saía do casulo e as asas eram maquiadas com todas as tonalidades possíveis e balançavam e balançavam e balançavam.
Lembrou-se da avó. A avó costurava. A avó costurava as asas da família e as colchas que protegiam do frio. A avó também era borboleta, mas escolheu a vida direita. Ela, não. Quis voar e tanto voou que nunca teve porto seguro. Mas o que é porto seguro? Lavar a louça, cuidar dos filhos, varrer o chão, cozinhar?
Era borboleta assumida. Gostava da lua, das jóias e das promessas grandiosas ao pé do ouvido. Não precisavam acontecer de fato, ela só queria ouvi-las: “ Vou te levar para Paris” “Largo tudo por ti!” “Vou te mandar um diamante”
As lágrimas. Por que vieram? Ela escolheu o seu destino. Lágrimas insistentes! Lágrimas borram a maquiagem, o rosto desfeito como pintura de palhaço suado e vulgar. A avó! Lembrou da velha avó que voou ao vazio da vida em família. Lembrou dos últimos encontros, quando sentava ao lado dela e tentava costurar. A avó falava da vida, dos ventos, das várias vozes de família.
- Ai!
- Cortou-se? Toda costura envolve riscos.
- Cortei-me. Percebe o sangue, avó?
- Sangue vivo. Indício de que a costura desencadeia sangue.
Costuro anos a fio estas asas de borboleta. Juntei todas as nossas mulheres. Todos os pedaços de vida estão aqui. Pedaços de vida infeliz em sua maioria . Neste passatempo, esqueci o abandono, o descaso, a escravidão imposta pelos filhos e pelo esposo.
- Costuraste para esquecer a inquietude do coração? Artifício de abstrair o amor inquieto?
- Sim, filha. Estão quase prontas as tua asas. Eu não posso interferir na sina de cada uma das nossas mulheres. Quando as asas estão prontas ou se morre ou se voa...Eu morri.
A avó nunca usou as asas, ela as fez para que as netas pudessem escolher entre o casamento ou o mundo. Nenhuma sacrificou a vida direita...Ela, das netas, foi a única. Abandonou tudo e foi viver. As lágrimas secam e dão ao rosto uma textura grudenta, pegajosa. Está pronta para o último voo.Está arrependida de não ter escolhido o outro caminho. Está só e sua cor já não é mais a mesma. Borboleta infeliz! Acreditou na liberdade e se esqueceu de que no fim da vida, a liberdade é tudo que não se quer.

Charlie Rayné- Jornalista
Charlie.rayne@gmail.com