sábado, outubro 28, 2006


A Festa de Drielle

Drielle, por intermédio do pai e da mãe nasceu. Por homenagem do nome do pai Adriano, um agiota e ex seminarista e da mãe, uma senhora do lar e adepta da maconha nas folgas da lavagem do chão e da louça, nasceu Drielle. Nome que pobre acha requintado. Basta colocar um "elle" que parece que a sujeira fica encoberta. Não falo do requinte financeiro, mas do requinte de ser humano. Não falo do requinte das regras de etiqueta, mas da parcimônia em participar do alimento, da mesa, com elegância da simplicidade.
Um homem se matou. Matou-se o cliente do agiota seminarista. A Senhora do lar fumava sua maconha e brincava com seus dedos murchos e gordinhos, quando o telefone tocou. O agiota lia o salmo trinta e três, idade de Cristo. Drielle prepara uma festa no Rio de Janeiro, onde vive, cheira, degusta e suga o dinheiro do pai, o agiota que lia o salmo bíblico e enquanto seu devedor estourava os miolos com uma arma calibre 38.
- Alô? Alô?
- Pode ser amanhã?
- Amanhã? Não. Hoje mesmo! Agora, neste exato momento!
-Não tenho como pagar...
- Eu compro e você busca! Pode ser?
- Já acabou e meu marido está lendo a bíblia...Você sabe que a palavra é sagrada!
Estrondo. A maconha fumada e seu efeito acabou. A mulher do lar desliga o telefone. Drielle, no Rio cheira uma carreira de cocaína e mostra aos amigos sua nova casa, casa esta que nem é sua, mas ela insiste em dizer que é.
- Uma república e todos são meus inquilinos...
- Democracia, Drielle?
-Sim. Sou mulher de lei. Sou mulher das leis da liberdade.
Outra carreira de cocaína e o agiota termina o salmo 33. A Senhora do lar abre a porta da frente de casa e toca no seio amortecido e inchado de um leite inexistente. Do seio saem litros de uma fumaça abundante, fumaça que parece nevoeiro de inverno.
Drielle prepara uma vodka sem gelo. O agiota liga o chuveiro e se masturba no banheiro de empregada. A Senhora do lar vai buscar mais "marijuana" e os familiares do cliente do agiota velam na capela o corpo do pai, esposo, tio e sobrinho, sob uma névoa de cigarros de todos os feitios e odores.
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Janeiro, Janaína e Januária...

É Janeiro. Janaína a jantar. Uma jarra de suco de maracujá transpira do calor excessivo. Um barraco diminuto e um jardim lá fora, carregado de margaridas. Margaridas de bem-me-quer ou mal-me-quer, que colocam a vida no patamar dos sortilégios. Arroz, feijão e carne de Segunda, um gole do suco já morno e planos de futuro.
Januária plantada num sofá caquético, olhar lacônico e corpo mole diante da televisão. Recém chegou, espera a filha comer. Janaína tenta controlar-se e comer pouco. Januária faz planos de que a filha coma rápido e deixe alguma sobra de comida. Janaína planeja muito mais que isso, é jovem e cheia de esperança...
Januária também foi assim um dia, seus planos eram bem mais grandiosos que um jantar de início de ano. O vestido branco, a casa de varanda, o homem comerciante e sóbrio, mesa e coração fartos de vida...
Janaína dá a última colherada de arroz e feijão. Januária, de soslaio, sente que chegou o momento de sentar-se à mesa e fingir que é rainha. O corpo marcado de suor e as mãos cheirando a clorofina, levantam-se num desespero velado. Janaína lambe o prato, ainda sente fome. Januária serve-se pouco, a menina talvez ainda sinta o estômago insatisfeito.
É muito quente lá fora. O sol gargalha por entre os esgotos a céu aberto e cabeças de meninos sujos. Janaína vai ver suas margaridas. Januária manda ver na comida.
Janaína come as margaridas, com os olhos, a boca e os sonhos. Um jardim imenso, uma casa extensa, um amor intenso e banho de sol na piscina.
Januária não pensa no futuro, pensa no presente, na carne e no sangue de cada dia, que parecem escassear cada vez mais. Feliz Ano Novo! Feliz Ano Louco! Feliz Ano Morto!
Em breve vai arrumar serviço. A boca repleta de pétalas de margaridas, as mãos a tirar a sorte das flores. Mal-me-quer, Bem-me-quer, Mal-me-quer, Bem-me-quer!
Novos sonhos na cabeça de Janaína, desesperança na face enrugada de Januária.
Januária liga a televisão. O novo presidente promete acabar com a fome no Brasil. Januária chora copiosamente, pondo as mãos encardidas nos olhos cheios de lágrimas de cebola...
Janaína retorna. Januária está com os olhos repletos de margaridas. O Presidente também chora, pondo seus quatro dedos nos olhos esperançosos. Mãe e filha olham-se mutuamente: este há de ser um ano diferente!
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domingo, outubro 22, 2006

Promessas Não Cumpridas...
Eu prometi que semanalmente iria postar neste flog. Eu prometi que jamais tomaria um porre de caipirinha feita com cachaça barata. Eu prometi que não escutaria músicas "dor- de -cotovelo" mais. Prometi ser menos vaidoso, menos ansioso, menos ingênuo, menos ignorante nas artes da malícia humana.
Arrumar a cama, ler livros, prometi não correr mais riscos...
Pois bem, quero neste momento fazer a única promessa que posso! Chega de promessas instáveis! Não sou político, pastor de igreja ou produtor cultural! Não ofereço prato feito, cantinho no céu, nem pauta na brodway!
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Cartas de Leitores? Comigo?
Descobri que muitas pessoas me lêem. Fico atônito! Tenho recebido e-mails de todas as partes do Brasil e também de Portugal. Fico vaidoso e prometi que deixaria de ser!
Além dos amigos, tenho tido o carinho de muitas pessoas desconhecidas que se identificam com as minhas coisas.
Vaidoso! Vaidoso, sim! Não tenho recursos de publicar livros e sou lido por muita gente! Vou transcrever a mensagem de Alessandra, de Araxá, Minas Gerais, que me descobriu num site literário e me enviou a mensagem mais linda que recebi:
"Caro, Charlie Rayné
Realmente fiquei muito tocada pela sua literatura. Tenho lido tanta coisa inútil, que não serve para reflexão! Quando me deparei com a crônica, "Feliz Natal, meu amor" e "Senhor Cor", descobri que tuas palavras tem o dom do alívio, o poder da identificação, a magia de radiografar os sentimentos mais guardados dentro de cada um de nós. Agora que te descobri, quero te ler muito, sempre!
Um beijo da fã mineira,
Alessandra Gomes"
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De Cuidado e de Vazio
Cuidado

Estou em trégua, cuidado com teus passos ruidosos, não grites, tampouco gargalhe do meu nariz...
A trégua antecede e sucede as guerras. Cuidado, amor, pareço frágil...
Meu jogo dispensa a escala linear, estou em trégua, mas trevas sei ser...
Vês quanta candura posso ter, vês quanta doçura te digo, errante de ti?
Sorvetes, mãos entrelaçadas, salada de frutas e beijos de mormaço!
Cuidado amor, estou em trégua, mas treva posso fazer. Neste mesmo instante, agora, já !
Na velocidade das tragédias, dos incêndios, dos carnavais...

Vazio

Um vazio. Um grande vazio. Cores sujas em ruas acizentadas.
E ao longe um balão multicolorido, prometendo graças e fantasias...
Ele passa. Ele voa e esquece de descer.
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Texto para Reflexão("Trecho de O Conto de Água Seca", de Charlie Rayné)
Antônio: Descansar, não é mesmo?

Maria: Quanto tempo falta, Tonho?

Antônio: Uns dias mais...Onório, por que cessou o falatório?

Onório: Cansaço!

Maria: Os meninos tão chorando. Trouxe água prá eles?

Antônio: Pega aí, dentro do saco. E a Serena, seu Onório?

Onório(sombrio e triste) Serena morreu, compadre. A minha bezerrinha morreu faz muito tempo...

Antônio: Não. Eu to vendo ela aí...To vendo! Ta fazendo bé pro senhor!

Onório: E eu escuto os filhos de vocês chorar...Eu escuto!

Maria(nervosa, quase descontrolada) É fome, não é? Mas tem água aqui seu Onório! Tem água! A Serena ta com sede!

Onório: Não existe água nenhuma, comadre Maria! Nenhuma! Não existe vida nesse fim de mundo!

Maria: O Padre disse que água é vida! Como não tem vida se os meninos tão tomando água!

Onório: Não tem água...Não tem Serena...Vida não tem!

Os atores deitam para descansar. Transição. Acordam.

Antônio: Retomar viagem? Acorda Maria! Acorda os meninos! Seu Onório! Seu Onório!

Onório:
Sonhei com a Serena! Chovia muito! Muito! Ela bebia a água que se espalhava em cada canto. As crianças de vocês pulavam nas poças...Já eram bem maiores. Eu dançava com minha velha, que Deus a tenha, e vocês dançavam sem parar...

Maria: Conta mais compadre! Conta!

Onório: Deus lá de cima chorava de felicidade e cada gota dele fazia um rio imenso. A gente ria muito! Muito! (os atores começam a encenar o sonho) Tinha comida farta e cachaça, aos poucos todos vinham para cá. Uma cidade cheia de água.

Maria: E formava o mar?

Onório: Formava! De tudo, Maria! De tudo!

Maria: Compadre! O que havia mais?

Onório: A esperança que morreu quando eu coloquei meus olhos cansados nos teus meninos...

Maria: Não...Não fale assim...Não Fale!

Onório: Vamos seguir viagem?

Antônio: Por que está chorando Maria? Pega os meninos e vamos embora!

Onório: A Serena e os meninos!

Maria: O que tem eles?

Onório: Eles estão neste lugar do meu sonho!

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charlie.rayne@gmail.com