sexta-feira, fevereiro 18, 2011


Filho Prodígio
Ele escuta uma música que fala de filho pródigo. O ônibus sacode, o coração treme, esperançoso por voltar àquela terra. A terra nos faz nascer, ela doa os primeiros encontros, o clima propício, as palavras comuns, a primeira bagagem. A mesma terra nos faz sofrer, posto que ela é palco das nossas tragédias mais íntimas, posto que nascemos dela e nascer é trágico.
Viagem intensa: Selva de Pedra-Interior. Sente uma dor deliciosa, dor de voltar ao obscuro ventre que o cuspiu no mundo. Não, não foi a terra tão sua que o cuspiu, foram as gentes! Mas o que são as gentes senão a terra com comunicação verbal?
O ônibus para. Nada a sua espera. Nada. Tomou o táxi sem saber para onde ir, sem nada mais saber. Sangue descontrolado na veia, frenético, sem saber para onde correr.
- O Senhor vai para onde? Senhor? Aonde Senhor?
Ele nem sabe. Parado no táxi, na cidade parada para ele. Ele não é mais dela? Pensou tanto, planejou tanto voltar que percebe que não há amigos nem sonhos de infância. Só gente duvidosa dele e ele mais duvidoso ainda de si e deles. Eles quem? Nem existiam mais ou existiam no interior do seu interior?
- O Senhor está se sentindo mal?
-Meu jovem, leve-me para aquele hospital, aquele antigo... Foi lá que eu nasci.
O taxista é jovem, não entende do que ele fala; o taxista não sabe que naquele cenário ele sorriu e chorou, às vezes, inúmeras vezes... O taxista desconhece os mortos dele, nada sabe de chão, ainda não. Ainda não é tempo.
Morrer onde nasceu. Ele tem o privilégio disto. Poucos podem planejar - a morte nem sempre avisa. Ele não, ele está ciente, ele recebeu este presente e futuro não existe mais.
Saudade e Raiva. Lembrança e vontade de esquecer.
Pára o táxi. Ele desce. O taxista cobra a corrida. Ele não quer pagar, mas paga. A cidade não o deveria indenizar os tempos injustos? O taxista é jovem, não entende de história, ainda não.
- Está vendo aquele prédio ali moço? Meu pai que fez e eu ajudei a construir.
O taxista sorri, inexpressivo. Ele fica ali, defronte do prédio e adiante não há mais. Outro carro, desgovernado desponta: apressado, engole o carro do taxista, que dança no céu e na terra pousa. Ele é velho, já viu muitas coisas, mas o jovem não verá! Aproxima-se do carro. Sangue vivo. Jovem morto? E o outro carro? Onde está?
O Hospital. Ele corre como se tivesse a energia de antes. Ele corre com a energia do rapaz que agora é velho, que agora é tarde demais. Transplante de vida?
O jovem nada mais pode fazer, mas ele pode ainda! Ele pode respirar o ar daquela noite triste e mágica. Ele pode ver aquela folha cair e levantar pela força do vento. A terra pode nos fazer nascer, morrer e nascer de novo- pensa.
Ambulância, gentes e sirenes. Ele se afasta, não quer saber de fim, mas de recomeço. A dor deliciosa do Filho Prodígio.

Charlie.rayne@gmail.com- Jornalista

quarta-feira, fevereiro 09, 2011


A Dona do Pássaro Livre

O amor é pássaro livre, se te amo, cuidado. Ela disse bem assim. Um trecho traduzido de Carmem. Ela disse com os olhos fortes, aguados. Ela disse com dele. Enroscou-se, preparou seu bote e beijou-lhe a boca com força nos braços miúdos, braços que se grudaram ao pescoço mordidas fortes e hálito de chiclete tutti-frutti. Ela falou da importância e da responsabilidade de cativar as pessoas e citou Exupéry com sua obra O pequeno príncipe.

Frases feitas a dela, frases que ela ousou se apoderar, frases que se incorporaram a sua cabeça de mulher menina ou melhor, menina-mulher.

Ela põe a colher na boca do amado, ela desmancha-se em elogios, ela dá gritos de felicidade. Ela, toda a felicidade e ele tem medo. Ele tem medo de amar aquela menina tão encantada que o desencantou de antigos amores, que colocou na sua vida pitadas de açúcar, que o fez pensar novamente na saudade do que ele já nem sabia mais.

Ela o deixa livre e isto já o engaiola e isto é bom. Ela o larga no firmamento e ele sempre volta ao cativeiro, ele enjoa o céu e quer a terra firme de seu corpo pequeno e tão grandioso. Ele bate as asas e vento faz para que ela se refresque e isto é tão involuntário que lhe assusta. Quando ele a toca com seu bico já é, já foi, já aconteceu sem ele perceber.

Ela sabe que o ninho dele será numa terra distante. Ela sabe que ele é um livro que será emprestado e talvez nunca mais volte a enfeitar sua estante, mas ela o lê, ela o relê, ela revira suas páginas e coloca seu nome na folha de rosto. Ele deixa. Ele não se queixa. Ele quer. E ela vai, aos poucos, preenchendo sua história, reescrevendo e apagando sua vida trágica, colocando juventude e comédia, bolas de sabão e passeios de moto cor-de-rosa.

Ele, muitos anos a mais que ela. Ela nascera e ele já formado estava, já deformado andava pelos solavancos da vida, das armadilhas da noite, dos papos vazios e inúteis.

Ela tem consciência de que várias vezes ele perdeu sua plumagem, que inúmeras vezes alpiste lhe foi negado, que tantas vezes sua gaiola enferrujou, que mutilaram suas asas.

Ela o ensinou a voar novamente. Ela o cativou eternamente... Ele vai voar longe dela um dia! Ela disto sabe e nada quer além do tempo que lhes resta! Ela já é dona dele e não se vangloria, não deseja assumir autocraticamente a função, antes, quer que ele voe, voe, voe...

O amor é um pássaro livre... Se te amo, cuidado. Ele não tem medo de voltar à gaiola. Ele vai voar e vai procurar sempre o ninho que ela elaborou para ele com todo o cuidado, com todo o esmero, com toda a delicadeza do mundo.

Charlie Rayné- charlie.rayne@gmail.com